Momento literário: Voltaire e o fracasso das boas intenções

Além daquelas resoluções de final de ano, que normalmente nunca são cumpridas, talvez você já tenha experimentado algumas tentativas de mudança de vida que também resultaram em um retumbante fracasso. Basta experimentar que algo não vai bem, que algum mau hábito está realmente atrapalhando sua realização pessoal, que aqueles quilinhos a mais realmente estão incomodando… e pimba! A partir de hoje vou mudar isso! Somente com essa resolução a dopamina (leia artigo)já dispara, e a sensação é ótima. Seja lá qual for o problema, a solução está logo ali, ao alcance das mãos, e basta um pouco de determinação para alcançar os resultados almejados. Que venha, pois, o jejum intermitente, a dieta natural e sem muito sacrifício, o acordar e o dormir cedo, a abstinência super saudável (uma resolução fantástica quando estamos de ressaca), o aproveitamento superprodutivo do tempo, colocando o celular e as redes sociais no seu devido lugar etc. Tudo muito bonito, perfeito e… efêmero. Mas, antes de continuarmos, vamos ler primeiro um pouco de boa literatura.

Há um conto muito curto de Voltaire que é muito divertido. Nele, um homem… ops… sem spoiler! Leia primeiro o conto, que no final faremos uma breve reflexão sobre esse tema.

Enganarmo-nos em nossos empreendimentos

É coisa a que estamos sujeitos;

Pela manhã faço projetos

E tolices o dia inteiro

François Marie Arouet (Voltaire)

Memnon concebeu um dia o insensato projeto de ser perfeitamente sábio. Não há homem a quem essa loucura não tenha ocorrido alguma vez.

“Para ser bastante sábio, e por conseguinte bastante feliz”, considerou Memnon, “basta não ter paixões; e nada é mais fácil, como se sabe. Antes de tudo, jamais amarei mulher nenhuma, pois, ao ver uma beleza perfeita, direi comigo mesmo: ‘Essas faces se enrugarão um dia; esses belos olhos se debruarão de vermelho; esses rijos seios se tornarão flácidos e pendentes; essa linda cabeça perderá os cabelos’. É só olhá-la agora com os olhos com que a verei então, e essa cabeça não há de virar a minha.

“Em segundo lugar, serei sóbrio. Por mais que seja tentado pela boa mesa, os vinhos deliciosos, a sedução da sociedade, bastará imaginar as consequências dos excessos, a cabeça pesada, o estômago arruinado, a perda da razão, da saúde e do tempo: apenas comerei por necessidade; minha saúde sempre será igual, minhas ideias sempre puras e luminosas. Tudo isso é tão fácil que não há nenhum mérito em consegui-lo.

            “Depois”, dizia Memnon, “devo pensar um pouco na minha fortuna. Meus desejos são moderados; meus bens estão solidamente colocados em mãos do recebedor-geral das finanças de Nínive; tenho com que viver independentemente; é esse o maior dos bens. Nunca me verei na cruel necessidade de frequentar a corte: não invejarei ninguém, e ninguém me invejará. Eis o que é também bastante fácil. Tenho amigos, continuava ele, “e ei de conservá-los, pois nada terão que me disputar. Nunca me indisporei com eles, nem eles comigo. Isso não tem dificuldade alguma.”

            Tendo assim feito no interior do quarto o seu pequeno plano de sabedoria, Memnon pôs a cabeça à janela. Viu duas mulheres que passeavam debaixo dos plátanos, perto de sua casa. Uma era velha e não aparentava pensar em nada. A outra era jovem, bonita, e parecia muito preocupada. Suspirava, chorava, e com isso não fazia mais que aumentar as suas graças. O nosso filósofo sentiu-se impressionado, não com a beleza da dama (estava seguro de não se entregar a tais fraquezas), mas com a aflição em que a via. Desceu à rua e abordou a jovem, com a intenção de consolá-la sabiamente. A linda criatura contou-lhe, com o ar mais ingênuo e comovente do mundo, todo o mal que lhe causava um tio que ela não tinha; com que artimanhas lhe roubara ele uns bens que ela jamais possuíra; e tudo o que tinha a temer da sua violência. “O senhor me parece um homem tão avisado”, lhe disse ela, “que, se tivesse a bondade de acompanhar-me até a minha casa e examinar meus negócios, estou certa de que me tiraria do cruel embaraço em que me encontro.” Memnon não hesitou em segui-la para examinar sabiamente os seus negócios e dar-lhe um bom conselho.

            A dama aflita levou-o para um salão perfumado e fê-lo sentar-se polidamente num largo sofá, onde se mantinham ambos, com as pernas cruzadas, um defrontando o outro. A dama falou baixando os olhos, de onde escapavam lágrimas de vez em quando e que, ao erguerem-se, cruzavam sempre com os olhares do sábio Memnon. As frases dela eram cheias de um enternecimento que redobrava sempre que os dois se olhavam. Memnon tomava os seus negócios extremamente a peito, e de momento a momento sentia maior desejo de socorrer a uma criatura tão honesta e tão desgraçada. No calor da conversação, deixaram, insensivelmente, de estar um defronte ao outro. As suas pernas descruzaram-se. Memnon aconselhou-a de tão perto, deu-lhe conselhos tão ternos, que nenhum dos dois podia falar de negócios, e não sabiam mais onde se achavam.

            E, como se achassem em tal ponto, eis que chega o tio, como era de prever; estava armado da cabeça aos pés; e a primeira coisa que disse foi que ia matar, como de razão, o sábio Memnon e a sobrinha; a última que lhe escapou foi que ainda poderia perdoar aquilo tudo mediante considerável quantia. Memnon foi obrigado a entregar tudo o que tinha consigo. Davam-se por muito felizes, naquele tempo, em livrar-se tão modicamente; a América ainda não havia sido descoberta e as damas aflitas não eram tão perigosas como hoje.      

            Memnon, envergonhado e desesperado, voltou para casa; encontrou um bilhete que o convidava para jantar com alguns amigos íntimos. “Se fico sozinho em casa”, considerava ele, “terei o espírito preocupado com a minha triste aventura, não poderei comer, e acabo adoecendo. É melhor ir fazer, com meus íntimos, uma refeiçãozinha frugal. Esquecerei, na doçura de seu convívio, a tolice que fiz esta manhã.” Comparece à reunião; acham-no um pouco taciturno. Obrigam-no a beber para dissipar a tristeza. Um pouco de vinho tomado com moderação é um remédio para a alma e o corpo. É assim que pensa o sábio Memnon; e embebeda-se. Depois propõem-lhe uma partida. Um joguinho entre amigos é um passatempo honesto. Ele joga; ganham-lhe tudo o que tem na bolsa, e quatro vezes mais sob palavra. No meio do jogo surge uma disputa; exaltam-se os ânimos: um de seus amigos íntimos lança-lhe à cara um copo de dados e lhe vaza um olho. Carregam para casa o sábio Memnon, embriagado, sem dinheiro e com um olho de menos.

            Cozinha um pouco seu vinho; e, logo que se vê com a cabeça mais livre, manda o criado conseguir dinheiro com o recebedor-geral das finanças de Nínive, a fim de pagar seus íntimos amigos: dizem-lhe que seu credor, pela manhã, abrira falência fraudulenta, deixando cem famílias em pânico. Memnon, consternado, dirige-se à corte, com um emplastro no olho e um memorial na mão, para pedir justiça ao rei contra o bancarroteiro. Encontra num salão várias damas, que usavam todas, comodamente, umas saias de vinte e quatro pés de circunferência. Uma delas, que o conhecia um pouco, exclamou, olhando-o de soslaio: – Ai, que horror! – Outra, que o conhecia mais, disse-lhe: – Boa tarde, Senhor Memnon. Verdadeiramente encantada de vê-lo, Senhor Memnon. A propósito, Senhor Memnon: como foi que perdeu um olho? – E passou adiante, sem esperar resposta. Memnon ocultou-se a um canto, aguardando o momento em que se pudesse lançar aos pés do rei. Chegado esse momento, beijou três vezes o chão e apresentou seu memorial. Sua Graciosa Majestade o recebeu muito favoravelmente e entregou o memorial a um dos sátrapas, para informar. O sátrapa chama Memnon à parte e diz-lhe com ar altivo, rindo amargamente: – Belo caolho me saiu você, dirigindo-se ao rei e não a mim! E ainda por cima ousa pedir justiça contra um honesto bancarroteiro a quem honro com a minha proteção e que é sobrinho de uma camareira de minha amante. Quer saber de uma coisa? Abandone esse negócio, meu amigo, se pretende conservar o olho que lhe resta…

            Memnon, tendo assim renunciado, pela manhã, às mulheres, aos excessos da mesa, ao jogo, a qualquer discussão, e sobretudo à corte, fora, antes de chegar a noite, enganado e roubado por uma bela dama, embriagara-se, jogara, metera-se numa disputa, perdera um olho e recorrera à corte, onde haviam zombado dele.

            Petrificado de espanto, transido de dor, regressa com a morte no coração. Quer entrar em casa: ali encontra oficiais de justiça que o despejavam em nome dos credores. Detém-se quase desmaiado sob um plátano; ali encontra-se com a bela dama da manhã, a passear com o querido tio, e que explode de riso ao ver Memnon com o seu emplastro. Tombou a noite; Memnon deitou-se na palha junto dos muros de sua casa. Veio-lhe a febre; assim adormeceu; e um espírito celeste lhe apareceu em sonhos.

            Era todo resplendente de luz. Tinha seis belas asas, mas nem pés, nem cabeça, nem cauda, e não se assemelhava a coisa alguma.

            – Quem és tu? – diz-lhe Memnon.

            – O teu bom gênio – respondeu-lhe o outro.

            – Devolve-me então o meu olho, a minha saúde, o meu dinheiro, a minha sabedoria – pede-lhe Memnon.

            Em seguida contou-lhe como perdera tudo aquilo em um único dia.

            – Eis aí aventuras que nunca nos acontecem no mundo em que habitamos – observa o espírito.

            – E em que mundo habitas? – indaga o infeliz.

            – A minha pátria fica a quinhentos milhões de léguas do sol, numa pequena estrela perto de Sírio, que tu vês daqui.

            – Que bela terra! – exclamou Memnon. – Quer dizer que lá não há espertalhonas que enganem um pobre homem, nem amigos íntimos que lhe ganhem o dinheiro e lhe furem um olho, nem bancarroteiros, nem sátrapas que zombem da gente, recusando-nos justiça?

            – Não – respondeu o habitante da estrela -, nada disso. Nunca somos enganados pelas mulheres, porque não as temos; não nos entregamos a excessos em mesa, porque não comemos; não temos bancarroteiros, porque não existe entre nós nem ouro nem prata; não nos podem furar os olhos, porque não temos corpos à maneira dos vossos; e os sátrapas nunca nos fazem injustiça, porque na nossa estrela todos são iguais.

            – Sem mulher e sem dinheiro – disse Memnon -, como passam então o tempo?

            – A vigiar – respondeu o gênio – os outros globos que nos são confiados; e eu vim para consolar-te.

            – Ah! – suspirava Memnon. – Por que não vieste na noite passada, para impedir-me de cometer tantas loucuras?

            – Eu estava junto de Assan, teu irmão mais velho – respondeu o ente celeste. – Ele é mais digno de lástima que tu. Sua Graciosa Majestade, o rei das Índias, em cuja corte tem a honra de servir, mandou-lhe vazar os dois olhos, devido a uma pequena indiscrição, e Assan acha-se atualmente num calabouço, com ferros nos pulsos e tornozelos.

            – Mas que adianta ter um gênio na família, para que, de dois irmãos, um esteja caolho, o outro cego, um nas palhas, o outro na prisão?

            – A tua sorte mudará – tornou o animal da estrela. – É verdade que será sempre caolho; mas, afora isso, ainda hás de ser bastante feliz, contanto que não faças o tolo projeto de ser perfeitamente sábio.

            – É então uma coisa impossível de se conseguir? – exclamou Memnon, suspirando.

            – Tão impossível – replicou o outro – como ser perfeitamente hábil, perfeitamente forte, perfeitamente poderoso, perfeitamente feliz. Nós próprios estamos muito longe disso. Há um globo em tais condições; mas, nos cem milhões de mundos que estão esparsos pela imensidade, tudo se encadeia por gradações. Tem-se menos sabedoria e prazer no segundo que no primeiro, menos no terceiro que no segundo. E assim até o último, onde todos são completamente loucos.

            – Receio muito – disse Memnon – que este nosso pequeno globo terráqueo seja precisamente o hospício do universo de que me fazes a honra de falar.

            – Não tanto – respondeu o espírito -, mas aproxima-se: tudo está no seu lugar.

            – Ah! – exclamou Memnon. – Bem se vê que certos poetas, certos filósofos, não tem razão nenhuma em dizer que tudo está bem.

            – Pelo contrário, tem toda a razão – retrucou o filósofo das alturas – levando-se em conta o arranjo do universo inteiro.

            – Ah! Só acreditarei nisso – replicou o pobre Memnon – quando não for mais caolho.

 

François Marie Arouet (Voltaire), Memnon ou A Sabedoria Humana

CONCLUSÃO

O conto, divertidíssimo quando pensamos em nossas próprias vidas e nos projetos muitas vezes tão tolos que fazemos, fala por si só. Mas pode trazer algumas reflexões interessantes.

Muitas vezes, em nossa imaginação, a vida que pretendemos parece-se mais com a vida do gênio da história do que com a nossa vida real. Ao contrário do gênio, nós temos um corpo, temos afetos, temos desejos, temos que ter dinheiro e temos que nos relacionar com os outros. Não existe a vida “perfeita”. Sempre teremos alguma falha, sempre teremos sofrimentos, e isso é maravilhoso, porque a própria vida em si é um constante aprendizado. Mas isso de modo algum significa conformismo ou resignação. O importante é aprender sempre e fortalecer os próprios valores, investir energia naquilo que importa, e não se condenar por erros e falhas. Eles fazem parte, tem o seu papel em nosso crescimento.

Também o conto nos lembra que há outros em situação muito pior. Não para que nos alegremos com a desgraça alheia, por não estarmos piores que eles, mas para refletir sobre as coisas boas que temos. Não ficar simplesmente contemplando nossos defeitos e carências, esquecendo das inúmeras coisas boas que temos e do que podemos melhorar.

Mas será que o sábio Memnon aprendeu a lição?

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