O funcionamento do cérebro: ele é um péssimo cozinheiro

Se a boa saúde fosse uma receita, quais seriam os ingredientes? Ainda que não haja consenso, penso que a lista de ingredientes abaixo seria bem satisfatória. Se não concorda com ela, crie a sua própria lista. Isso não afetará o que vem a seguir.

INGREDIENTES

  1. Carne
  2. Gordura animal
  3. Boas gorduras vegetais: azeite e óleo de coco
  4. Frutas, legumes e verduras
  5. Ovos
  6. Exercícios de resistência
  7. Exercícios cardiovasculares
  8. Sono suficiente e de qualidade
  9. Água

Porém, se usarmos todos esses ingredientes, a boa saúde estaria garantida? Infelizmente não. Não basta ter bons ingredientes. Você pode ter os melhores do mundo, mas se o cozinheiro for ruim, o resultado também será. E quem seria o cozinheiro, nessa analogia para uma boa saúde? Seu cérebro.

Antes de mais nada, seu cérebro não é o vilão da história. Ou pelo menos não deveria ser. No artigo Corpo e mente em harmonia – Mens sana in corpore sano fizemos uma analogia comparando o cérebro a um computador de incrível capacidade, mas que depende dos dados que recebe para funcionar bem. Na verdade, nosso cérebro está programado para gastar o mínimo de energia para produzir o melhor resultado, sempre. Por isso, sempre que aprendemos alguma coisa, e isso dá trabalho e gasta energia, nosso cérebro imediatamente busca automatizar o processo. Você já não precisa ficar pensando no que fazer ao dirigir um carro, ou ficar tentando se equilibrar ao andar de bicicleta. Tudo isso já foi automatizado pelo cérebro, o que nos permite focar em outras coisas mais relevantes no momento, gastar nossa energia em algo novo, produzir novos aprendizados e novas experiências. Mas essa automatização não se refere apenas a coisas como dirigir ou pedalar, mas abrange uma gama enorme de aspectos em toda a nossa vida e nosso comportamento. Pense nos grandes jogadores de xadrez de hoje em dia, por exemplo. Para alguém que gosta do jogo, mas nunca se aprofundou nele, Magnus Carlsen parece ser de outro planeta por causa das jogadas incríveis que faz. Mas isso significa apenas que, com tantos anos de treinamento, seu cérebro não percebe o jogo da mesma forma que o cérebro de um jogador amador, ele não pensa o jogo da mesma maneira. Ele usa o raciocínio a partir de um ponto bem além do nosso, pois boa parte de sua capacidade de análise já está automatizada, por assim dizer. Mas isso não é apenas para os gênios, isso acontece conosco todo o tempo.

Além dessa automatização de tarefas, também nosso cérebro está programado para, acima de tudo, garantir nossa sobrevivência. Isso significa fugir dos perigos, sejam eles predadores ou ter um gasto desnecessário de energia que possa ser fatal para a sobrevivência. Mas também o mecanismo do prazer é fundamental, pois para sobreviver é necessário alimentar-se, abrigar-se, cobrir-se no frio e se reproduzir para perpetuar a espécie. Ficar sozinho em meio a um mundo hostil também é fatal, por isso é fundamental estar em um meio social e organizá-lo de modo a se garantir a sobrevivência de todo o grupo.

Porém, já não vivemos em um mundo onde temos que coletar alimentos ou caçar, nem onde nós é que que podemos ser a caça. O mundo moderno é bem diferente, e alcançou grandes conquistas em todas as áreas, mas a vida é indubitavelmente diferente da que tinham nossos antepassados. No entanto, as necessidades básicas programadas em nosso cérebro não mudaram. Fugir do sofrimento (medo da fome, dos perigos, da segregação social, etc.) e buscar o prazer (alimentação, abrigo, busca de segurança e conforto, relacionamentos, etc.) continuam sendo fundamentais, significam nosso instinto de sobrevivência atuando sempre. Mas é muito diferente quando além do prazer necessário de ter uma boa refeição e um bom abrigo numa noite gelada somamos a isso o prazer de uma boa sobremesa e de uma boa cerveja, juntamente com uma incrível quantidade de filmes para assistir, milhares de sites para visitar, inúmeras mídias sociais para acompanhar, jogos online sempre disponíveis, aplicativos sem fim para organizar todo e qualquer aspecto de nossas vidas, seja a programação de exercícios à quantidade de água a beber durante o dia. Sem contar a lista enorme de possibilidades gastronômicas, cada uma capaz de proporcionar um prazer diferente, seja pela qualidade, seja pela quantidade do que é ingerido. As possibilidades de prazer são incontáveis.

Na outra face da moeda, também o mecanismo do medo é superalimentado. Quanto mais complexa se torna a sociedade, mais fontes de medo e sofrimento se apresentam, bem como o problema do estresse crônico. Não nos estenderemos sobre esse aspecto. Sobre isso, leia o artigo Cortisol: Dr. Jekyll ou Mr. Hyde? Sua incrível combinação com a dopamina e seus perigos quando vira o monstro.

Portanto, fica evidente que, ainda que saibamos quais são os melhores ingredientes para uma vida saudável, é necessário um mestre-cuca habilidoso para que tudo seja coordenado e usado de maneira conveniente. Abaixo apresentamos alguns dos problemas relacionados ao “cozinheiro”, ou seja, problemas e desvios do comportamento que podemos experimentar hoje em dia.

  1. O sistema de recompensa

Quando você realiza algo prazeroso, como comer um doce ou usar redes sociais, seu cérebro libera dopamina, um neurotransmissor ligado ao prazer e à recompensa. Essa liberação cria uma sensação de bem-estar que o cérebro “registra” como positiva. Mas isso se torna um problema quando uma atividade é repetida constantemente e o cérebro começa a associá-la a prazer instantâneo, tornando difícil resistir a ela, mesmo que os resultados sejam prejudiciais a longo prazo, como no caso de vícios em drogas, jogos ou alimentos não saudáveis. Para mais informações, leia o artigo Dopamina: a arma secreta do vencedor . 

  1. Formação de hábitos

Repetir um comportamento cria conexões mais fortes entre os neurônios, formando “atalhos” no cérebro, conhecidos como hábitos. Com o tempo, esses comportamentos passam a ser automáticos. Isso é muito bom quando falamos de bons hábitos, mas é péssimo quando se trata de maus hábitos. Os maus hábitos estão intimamente ligados à busca do prazer, à busca do prazer do item anterior. E quando um hábito se instala é muito difícil tirá-lo. Sobre os hábitos, sua gênese, gatilhos e modificação dos mesmos, leia O Poder do Hábito, de Charles Duhigg. 

  1. Busca de conforto e aversão ao desconforto

O cérebro prefere rotinas familiares porque elas demandam menos esforço cognitivo. Lembre-se: conseguir alimento era difícil e nem sempre garantido, e energia não deve ser desperdiçada. Isso faz com que seja difícil mudar comportamentos antigos, mesmo quando eles são prejudiciais. Junte a isso o problema do estresse crônico: sob pressão, o cérebro tende a recorrer a hábitos antigos, geralmente maus hábitos, como fumar, comer junk food ou procrastinar, para aliviar o desconforto. Para mais informações sobre o estrese, leia Cortisol: Dr. Jekyll ou Mr. Hyde? Sua incrível combinação com a dopamina e seus perigos quando vira o monstro.

  1. Falsa sensação de controle

Muitas vezes, o cérebro convence a pessoa de que “só mais uma vez” não fará diferença ou que ela tem controle total sobre o comportamento. Esse autoengano é uma maneira de justificar o vício ou os maus hábitos. Outra consequência do que já foi explicado.

  1. Papel do córtex pré-frontal e do sistema límbico
  • Córtex pré-frontal: É a área do cérebro responsável pelo planejamento, autocontrole e tomada de decisões racionais. No entanto, ele pode ser “sobrecarregado” ou “ignorado” pelo sistema límbico, que é mais primitivo e impulsivo.
  • Sistema límbico: Essa parte do cérebro é responsável por emoções e impulsos. Quando o sistema límbico domina, as pessoas tendem a agir com base em desejos imediatos, ignorando as consequências.

Ainda que não seja fácil, a reprogramação do cérebro é possível. Embora o cérebro possa nos sabotar com maus hábitos e vícios, se houver real disposição e disciplina, é possível reprogramá-lo. Em primeiro lugar, é importante lembrar que o cérebro tem neuroplasticidade, ou seja, tem a capacidade de formar novas conexões neurais, substituindo hábitos negativos por hábitos positivos. Há controvérsia se um hábito pode ser eliminado, porém é certo que os maus hábitos podem ser substituídos. Também práticas conscientes como mindfulness, vários tipos de meditação e terapia cognitivo-comportamental podem ajudar a enfraquecer circuitos antigos e fortalecer os novos. E sempre é possível a construção de novos hábitos. A repetição intencional de comportamentos saudáveis pode criar novos “atalhos” no cérebro.

Quando um mau hábito se instala, é muito difícil livrar-se dele. Ainda que a razão diga que ele é ruim, que prejudica o corpo e a mente, o cérebro lutará para mantê-lo, pois, ainda que seja irracional, isso significa manter um prazer, um alívio, evitar um sofrimento. Sem fugir da dor, dos perigos, e buscar a manutenção e a segurança, a humanidade não teria sobrevivido. Mas esse mecanismo é profundo, e subsiste também nas situações em que o medo não é tão drástico como quando se trata de fugir de um animal selvagem ou de evitar a fome. Por isso é tão difícil livrar-se de um mau hábito ou de um vício, mesmo sabendo do mal que causam. Não há solução fácil, pois a única solução é lutar. Lutar a curto prazo, para restabelecer o equilíbrio no longo prazo. Consciência do problema, ações deliberadas, paciência e disciplina são a chave para o sucesso.

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