Imagine a seguinte cena: você está em casa, com fome, e decide abrir um pacote de salgadinhos para beliscar enquanto espera o jantar. O sabor é irresistível, e, sem perceber, você come o pacote inteiro em poucos minutos. Mais tarde, pega uma bebida açucarada para acompanhar uma pizza congelada que aqueceu no micro-ondas. Parece uma refeição prática e satisfatória, mas o que você talvez não saiba é que esses alimentos, todos ultraprocessados, podem estar manipulando seu corpo de formas que vão além do simples prazer de comer. Eles podem estar te levando a consumir mais calorias do que você precisa, contribuindo para o ganho de peso e, a longo prazo, para problemas de saúde sérios. Essa não é apenas uma suposição — é o que uma pesquisa inovadora publicada na revista Cell Metabolism revelou.
Neste artigo, vamos explorar os perigos dos alimentos ultraprocessados, com base no estudo “Ultra-Processed Diets Cause Excess Calorie Intake and Weight Gain: An Inpatient Randomized Controlled Trial of Ad Libitum Food Intake”, conduzido por Kevin D. Hall e sua equipe em 2015. Vamos entender o que torna esses alimentos tão problemáticos, como eles afetam nosso corpo e comportamento alimentar, e quais são os principais tipos de ultraprocessados que você deve evitar. Prepare-se para uma leitura acessível, mas profunda, que pode mudar a forma como você enxerga o que coloca no prato.
O estudo que abalou as certezas sobre alimentação
Em 2015, um grupo de pesquisadores liderado por Kevin D. Hall, do National Institutes of Health (NIH) nos Estados Unidos, decidiu investigar uma questão que há muito intrigava cientistas e nutricionistas: será que o tipo de alimento que comemos — e não apenas a quantidade de calorias — influencia o quanto consumimos e, consequentemente, nosso peso? Para responder a isso, eles realizaram um ensaio clínico randomizado, um dos métodos mais rigorosos da ciência, publicado na Cell Metabolism.
O estudo envolveu 20 adultos saudáveis, com idades variando entre 18 e 50 anos, que foram internados no NIH por 28 dias. Durante esse período, os participantes foram divididos em dois grupos:
- Um grupo recebeu uma dieta composta exclusivamente por alimentos ultraprocessados, como cereais açucarados, salgadinhos, refrigerantes, pratos prontos (como lasanhas congeladas) e embutidos (salsichas e presuntos).
- O outro grupo consumiu uma dieta de alimentos minimamente processados, incluindo frutas frescas, vegetais, grãos integrais (como quinoa e arroz integral), carnes magras e laticínios naturais.
Um detalhe crucial: ambas as dietas foram cuidadosamente balanceadas para ter a mesma quantidade de calorias, macronutrientes (carboidratos, proteínas e gorduras), sódio, açúcar e fibras. Os participantes podiam comer à vontade, ou seja, não havia limite de consumo — os pesquisadores queriam observar o comportamento alimentar natural de cada grupo. Eles mediram o quanto cada pessoa comia, o impacto no peso corporal e até mudanças metabólicas, como níveis de hormônios relacionados à fome e saciedade.
Resultados surpreendentes
Os resultados foram impressionantes e desafiaram a ideia tradicional de que “uma caloria é uma caloria”, independentemente da fonte. Aqui estão os principais achados:
- Mais calorias consumidas com ultraprocessados:
O grupo que consumiu a dieta de alimentos ultraprocesados ingeriu, em média, 500 calorias a mais por dia em comparação com o grupo da dieta minimamente processada. Isso significa que, em duas semanas, eles consumiram cerca de 7.000 calorias extras — o equivalente a mais de 1 kg de gordura corporal. - Ganho de peso rápido:
Durante as duas semanas em que seguiram a dieta ultraprocessada, os participantes ganharam, em média, 0,9 kg. Em contrapartida, nas duas semanas em que consumiram alimentos minimamente processados, eles perderam, em média, 0,9 kg. Essa diferença de quase 2 kg em apenas um mês mostra o impacto direto do tipo de alimento no peso. - Comer mais rápido, sentir menos saciedade:
Os pesquisadores notaram que os participantes comiam mais rápido quando consumiam ultraprocessados. Isso acontece porque esses alimentos são geralmente macios, com menos fibras, exigindo menos mastigação. Por exemplo, um salgadinho de milho derrete na boca, enquanto uma maçã exige mais esforço para ser consumida. Essa velocidade reduz o tempo que o cérebro tem para registrar a saciedade, levando a um consumo excessivo. - alterações hormonais:
A dieta ultraprocessada aumentou os níveis de grelina, o hormônio da fome, e reduziu os níveis de PYY, um hormônio que promove saciedade. Isso significa que, mesmo depois de comer, os participantes ainda sentiam fome, o que os levava a comer mais. Além disso, houve um aumento na proteína C-reativa, um marcador de inflamação, sugerindo que esses alimentos podem desencadear respostas inflamatórias no corpo. - O papel da hiperpalatabilidade:
Os ultraprocessados são projetados para serem irresistíveis. Eles combinam altos níveis de açúcar, gordura e sódio, criando o que os cientistas chamam de “hiperpalatabilidade”. Essa combinação ativa os centros de recompensa no cérebro, semelhantes aos ativados por substâncias viciantes, fazendo com que você queira comer mais, mesmo sem estar com fome.
Por que isso importa?
Esse estudo é um marco porque mostra que o problema dos ultraprocessados não está apenas em sua composição nutricional — como o excesso de açúcar ou gordura —, mas na forma como eles são processados e apresentados. Eles não são apenas alimentos; são produtos engenhosamente desenhados para maximizar o consumo, muitas vezes às custas da nossa saúde. Como Kevin Hall destacou em entrevistas posteriores, “não é que as pessoas sejam fracas ou não tenham força de vontade; esses alimentos são feitos para serem difíceis de resistir”.
O que são alimentos ultraprocessados?
Antes de mergulharmos nos impactos desses alimentos, é importante entender o que os define. O conceito de ultraprocessados vem da classificação NOVA, desenvolvida por pesquisadores brasileiros como Carlos Augusto Monteiro, da Universidade de São Paulo. Essa classificação divide os alimentos em quatro grupos com base no grau de processamento:
- Grupo 1: Alimentos in natura ou minimamente processados — frutas, vegetais, grãos integrais, carnes frescas, leite pasteurizado.
- Grupo 2: Ingredientes culinários processados — óleos, açúcar, sal, usados para cozinhar.
- Grupo 3: Alimentos processados — pão caseiro, queijo, conservas, feitos com ingredientes dos grupos 1 e 2.
- Grupo 4: Alimentos ultraprocessados — produtos industrializados com muitos aditivos, como refrigerantes, salgadinhos, biscoitos recheados, pratos prontos e embutidos.
Os ultraprocessados são caracterizados por terem uma longa lista de ingredientes, muitos dos quais você não encontraria na sua cozinha: estabilizantes, flavorizantes, corantes, emulsificantes, além de altos níveis de açúcar, gordura e sódio. Eles são feitos para durar meses nas prateleiras, ter sabores intensos e texturas que derretem na boca — tudo isso para garantir que você volte para comprar mais.
Como os ultraprocessados afetam nosso corpo?
O estudo de Hall e sua equipe revelou que os ultraprocessados nos levam a comer mais e ganhar peso, mas os impactos vão além disso. Vamos explorar os efeitos em diferentes sistemas do corpo, com base no que a ciência sabe hoje.
1. Sistema endócrino: desequilíbrio hormonal
Como vimos, os ultraprocessados afetam os hormônios da fome e saciedade. A grelina, que sinaliza fome, aumenta, enquanto o PYY, que sinaliza saciedade, diminui. Isso cria um ciclo vicioso: você come, mas logo sente fome de novo. Além disso, o consumo excessivo de açúcar, comum nesses alimentos, pode levar à resistência à insulina, um precursor do diabetes tipo 2. Um estudo da British Medical Journal (2019) confirmou que dietas ricas em ultraprocessados aumentam o risco de diabetes em 12% a cada 10% de aumento no consumo.
2. Sistema cardiovascular: riscos silenciosos
Muitos ultraprocessados contêm gorduras trans (embora banidas em muitos países, ainda presentes em alguns produtos) e altos níveis de sódio. As gorduras trans elevam o colesterol LDL (“ruim”) e reduzem o HDL (“bom”), aumentando o risco de infarto e AVC. O sódio, presente em salgadinhos e embutidos, eleva a pressão arterial. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que o excesso de sódio causa 1,7 milhão de mortes por ano por doenças cardiovasculares.
3. Sistema digestivo: inflamação e microbiota
Os ultraprocessados são pobres em fibras e ricos em aditivos como emulsificantes (carragenina, goma xantana), que podem alterar a microbiota intestinal. Um estudo da Nature (2015) mostrou que esses aditivos causam inflamação no intestino, potencialmente agravando condições como síndrome do intestino irritável e até contribuindo para doenças metabólicas. A inflamação crônica, como a observada no estudo de Hall com o aumento da proteína C-reativa, também está ligada a doenças como câncer e Alzheimer.
4. Saúde mental: o cérebro na mira
Os ultraprocessados ativam os centros de recompensa no cérebro, liberando dopamina, o que pode criar um comportamento semelhante ao vício. Um estudo da Public Health Nutrition (2020) sugeriu que o consumo frequente de ultraprocessados está associado a maior risco de depressão e ansiedade, possivelmente devido à inflamação sistêmica e à falta de nutrientes essenciais, como ômega-3 e vitaminas do complexo B, abundantes em alimentos in natura.
Os vilões do dia a dia: tipos de alimentos ultraprocessados
Agora que entendemos os impactos, vamos identificar os principais tipos de ultraprocessados que você provavelmente encontra na sua rotina, com exemplos e os males específicos que causam.
1. Refrigerantes e bebidas açucaradas
- Exemplos: Coca-Cola, Fanta, sucos de caixinha.
- Problemas: Contêm cerca de 39g de açúcar por lata (quase 10 colheres de chá), ácido fosfórico (que desgasta os dentes e interfere na absorção de cálcio) e corantes artificiais (como tartrazina, associada a hiperatividade em crianças).
- Riscos: Obesidade, diabetes tipo 2, cáries e esteatose hepática (gordura no fígado).
2. Salgadinhos e snacks fritos
- Exemplos: Doritos, Ruffles, Cheetos.
- Problemas: Ricos em gorduras trans (ou saturadas, dependendo do produto), sódio (até 800mg por porção) e flavorizantes como glutamato monossódico, que pode causar dores de cabeça em pessoas sensíveis.
- Riscos: Hipertensão, colesterol alto, inflamação crônica.
3. Biscoitos recheados e bolos industrializados
- Exemplos: Oreo, Negresco, bolos Bauducco.
- Problemas: Contêm gorduras hidrogenadas, açúcar em excesso e conservantes como sorbato de potássio.
- Riscos: Ganho de peso, resistência à insulina, inflamação.
4. Embutidos e carnes processadas
- Exemplos: Salsicha Sadia, presunto, mortadela.
- Problemas: Nitritos (conservantes associados ao câncer colorretal), sódio elevado e gordura saturada.
- Riscos: Câncer, doenças cardiovasculares, hipertensão.
5. Pratos prontos congelados
- Exemplos: Lasanha Seara, pizza Dr. Oetker, nuggets Perdigão.
- Problemas: Alto teor de sódio, gorduras trans e baixa densidade nutricional.
- Riscos: Hipertensão, obesidade, deficiências vitamínicas.
6. Cereais matinais açucarados
- Exemplos: Sucrilhos, Nescau Cereal.
- Problemas: Alto índice glicêmico, corantes e baixa fibra.
- Riscos: Picos de glicose, fome precoce, obesidade.
7. Molhos e temperos prontos
- Exemplos: Ketchup Heinz, maionese Hellmann’s, caldo Knorr.
- Problemas: Sódio, açúcar e conservantes como benzoato de sódio.
- Riscos: Hipertensão, retenção hídrica, formação de compostos cancerígenos (benzeno).
8. Doces e sobremesas industrializadas
- Exemplos: Chocolates KitKat, balas Fini, sorvetes Kibon.
- Problemas: Açúcar, gorduras trans, corantes e emulsificantes.
- Riscos: Cáries, obesidade, inflamação intestinal.
Reflexão crítica: o que podemos aprender?
O estudo de Hall e sua equipe nos dá uma visão clara: os ultraprocessados não são apenas “menos saudáveis” — eles são projetados para nos fazer comer mais, quase como uma armadilha. Mas há nuances a considerar. O estudo foi feito em um ambiente controlado, com participantes que não precisavam lidar com as pressões do dia a dia, como o custo dos alimentos ou a falta de tempo para cozinhar. No Brasil, por exemplo, alimentos frescos muitas vezes são mais caros e menos acessíveis, especialmente em “pântanos alimentares” — áreas onde predominam ultraprocessados baratos. Isso levanta uma questão: será que a culpa é apenas do consumidor, ou o sistema alimentar, que prioriza lucro sobre saúde, também tem responsabilidade?
Além disso, nem todo ultraprocessado é igual. Um iogurte com adoçante artificial é ultraprocessado, mas pode ser uma opção melhor do que um refrigerante. Talvez o foco deva ser reformular esses produtos, reduzindo aditivos e melhorando a qualidade nutricional, em vez de bani-los completamente. A indústria alimentícia, como a Abia no Brasil, argumenta que o processamento é essencial para segurança e acessibilidade alimentar. Mas, como o estudo de Hall mostra, o processamento excessivo vai além da necessidade — ele manipula nosso comportamento.
Como reduzir o consumo de ultraprocessados?
Mudar hábitos alimentares pode parecer desafiador, mas pequenas ações fazem diferença. Aqui estão algumas dicas práticas:
- Leia os rótulos: Escolha produtos com poucos ingredientes e evite aqueles com aditivos como corantes, flavorizantes e emulsificantes.
- Priorize o fresco: Frutas, vegetais, grãos integrais e proteínas magras devem ser a base da sua dieta.
- Cozinhe mais: Preparar refeições em casa, mesmo que simples, reduz a dependência de pratos prontos.
- Planeje as compras: Faça uma lista de compras para evitar impulsos no supermercado, onde ultraprocessados dominam as prateleiras.
- Hidrate-se com água: Substitua refrigerantes e sucos de caixinha por água ou chás naturais.
Conclusão: um chamado à ação
O estudo de Kevin Hall e sua equipe, publicado na Cell Metabolism, é um alerta poderoso: os alimentos ultraprocessados não são apenas uma escolha menos saudável — eles são uma armadilha que nos leva a comer mais, ganhar peso e comprometer nossa saúde. Desde o desequilíbrio hormonal até o risco de doenças crônicas, os impactos são reais e mensuráveis. Mas a boa notícia é que você tem o poder de mudar isso. Cada escolha alimentar é uma oportunidade de priorizar sua saúde e bem-estar. Da próxima vez que abrir a geladeira ou passar pelas prateleiras do supermercado, lembre-se: o que você come hoje define como você se sentirá amanhã.
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FONTES
- “Alimentos ultraprocessados: o que são, exemplos e porque fazem mal”. Tua Saúde, 2024. Disponível em: https://www.tuasaude.com/alimentos-ultraprocessados/
- “Entenda o perigo de consumir alimentos ultraprocessados”. Portal Drauzio Varella, 2023. Disponível em: https://drauziovarella.uol.com.br/nutricao/entenda-o-perigo-de-consumir-alimentos-ultraprocessados/
- “Alimentos ultraprocessados e nossa saúde”. Portal Drauzio Varella, 2024. Disponível em: https://drauziovarella.uol.com.br/nutricao/alimentos-ultraprocessados-e-nossa-saude/
- “Por que limitar o consumo de alimentos processados e evitar alimentos ultraprocessados?”. Ministério da Saúde, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-brasil/eu-quero-me-alimentar-melhor/noticias/2022/por-que-limitar-o-consumo-de-alimentos-processados-e-evitar-alimentos-ultraprocessados