O frio é uma força da natureza que desperta reações distintas em cada um de nós. Enquanto algumas pessoas enfrentam o inverno com um casaco leve e um sorriso no rosto, outras se encolhem sob camadas de roupas, ainda sentindo os dentes baterem. Por que isso acontece? Será que a resistência ao frio é apenas uma questão de força de vontade, ou há algo mais profundo – cultural, genético, biológico ou até geográfico – moldando essa diferença? E mais: o frio, esse vilão para muitos, pode na verdade fazer bem à saúde? Técnicas como a de Wim Hof e o Tummo prometem não só tolerância ao gelo, mas uma revolução no corpo e na mente. Neste artigo, vamos mergulhar nesse universo gelado, explorar os fatores que nos tornam mais ou menos resistentes ao frio e descobrir como podemos domá-lo – ou até abraçá-lo.
Por que alguns sentem menos frio?
Imagine dois amigos caminhando em uma manhã de inverno. Um deles está tranquilo, com as mãos no bolso, enquanto o outro tremendo, reclamando do vento cortante. O que está acontecendo aqui? A resposta não é única, mas multifacetada, como um quebra-cabeça cujas peças incluem genética, biologia, geografia e até cultura.
O papel da genética: um presente dos ancestrais
Nossos genes contam uma história antiga. Estudos recentes apontam que variações genéticas podem influenciar diretamente como lidamos com o frio. Um dos genes mais pesquisados é o ACTN3, que codifica a proteína α-actinina-3, presente nas fibras musculares de contração rápida. Cerca de 20% da população mundial carrega uma mutação chamada R577X, que impede a produção dessa proteína. Curiosamente, essa mutação é mais comum em populações que migraram para climas frios, como o norte da Europa, há dezenas de milhares de anos.
O que isso significa na prática? Pessoas com essa mutação tendem a ter mais fibras musculares de contração lenta, que geram calor de forma constante e eficiente, sem depender tanto dos tremores – aqueles movimentos involuntários que o corpo usa para se aquecer, mas que gastam muita energia. Em experimentos, indivíduos com o genótipo R577X resistiram mais tempo em água gelada, mantendo a temperatura corporal sem grande esforço. Essa adaptação pode ter sido uma vantagem crucial para nossos antepassados enfrentando invernos rigorosos, e hoje explica por que alguns parecem imunes ao frio enquanto outros sofrem.
Biologia: gordura, músculos e metabolismo
Além da genética, nosso corpo em si desempenha um papel enorme. A gordura subcutânea, aquela camada logo abaixo da pele, age como um isolante térmico natural. Pessoas com maior percentual de gordura corporal – especialmente se bem distribuída – tendem a sentir menos frio. Pense em como os animais do Ártico, como focas e ursos polares, dependem de suas grossas camadas de gordura para sobreviver. Nos humanos, não é diferente: um estudo em Florianópolis mostrou que indivíduos com índice de massa corporal (IMC) mais alto relatavam maior conforto térmico em ambientes frios, preferindo temperaturas mais baixas que seus colegas mais magros.
O metabolismo também entra na dança. Quem tem um metabolismo basal mais acelerado – ou seja, queima mais energia em repouso – gera mais calor interno. Isso pode ser influenciado por fatores como idade (crianças e jovens têm metabolismos mais rápidos) e condicionamento físico. Atletas, por exemplo, muitas vezes toleram melhor o frio graças a uma combinação de massa muscular e eficiência metabólica.
Geografia: onde você vive molda você
O lugar onde nascemos e vivemos deixa marcas. Populações de regiões frias, como os inuítes do Ártico ou os povos escandinavos, desenvolveram adaptações fisiológicas ao longo de gerações. Os inuítes, por exemplo, têm mãos e pés que mantêm o fluxo sanguíneo mesmo em temperaturas glaciais, reduzindo o risco de congelamento. Isso é biologia moldada pelo ambiente.
Mas não é só uma questão de herança. A exposição repetida ao frio “treina” o corpo. Quem cresce em um clima gelado aprende a não se incomodar tanto – o cérebro ajusta a percepção do frio, e o corpo ativa mecanismos como a vasoconstrição (redução do fluxo sanguíneo na pele) com mais eficiência. Já alguém do trópico, acostumado ao calor, pode sentir um choque ao enfrentar 10°C, enquanto um norueguês nem pegaria o casaco.
Cultura: o frio na cabeça
A cultura também pesa. Em países nórdicos, o frio é parte da vida – há até um ditado finlandês que diz: “Não existe mau tempo, apenas roupa inadequada”. Crianças brincam na neve desde cedo, e banhos em lagos gelados são tradição. Essa familiaridade reduz o desconforto psicológico. Compare isso com culturas tropicais, onde o frio é raro e muitas vezes associado a algo negativo, como doença. A forma como encaramos o frio – como inimigo ou como amigo – afeta nossa tolerância. É quase como se a mente dissesse ao corpo: “Relaxa, você aguenta isso”.
O frio faz bem à saúde?
Por séculos, o frio foi visto como algo a evitar. Mas e se ele for, na verdade, um aliado? Pesquisas recentes sugerem que a exposição controlada ao frio traz benefícios surpreendentes.
Benefícios físicos: do coração à gordura
Nadar em água gelada ou tomar um banho frio pode parecer loucura, mas há ciência por trás disso. O frio estimula a circulação sanguínea – quando o corpo detecta a baixa temperatura, ele trabalha para aquecer os órgãos vitais, fortalecendo o sistema cardiovascular. Um estudo na Finlândia associou banhos frios regulares a uma redução no risco de doenças cardíacas.
Outro efeito fascinante é a ativação da gordura marrom, um tipo de tecido adiposo que queima calorias para gerar calor. Diferente da gordura branca, que apenas armazena energia, a gordura marrom é um “aquecedor” natural. Bebês têm bastante dela, mas nos adultos ela diminui – exceto quando somos expostos ao frio. Pesquisas mostram que temperaturas baixas podem “acordar” essa gordura, ajudando no controle de peso e até na prevenção de diabetes.
Saúde mental: um choque positivo
O frio também mexe com a cabeça – no bom sentido. A exposição a temperaturas baixas aumenta a liberação de endorfinas, os hormônios do bem-estar, e de adrenalina, que dão um gás no ânimo. Nadadores de água fria relatam menos ansiedade e uma sensação de euforia. Um estudo de caso no Reino Unido, embora pequeno, mostrou que uma jovem de 24 anos reduziu sintomas de depressão após começar a nadar em águas geladas. Não é cura milagrosa, mas o frio parece dar um reset no sistema nervoso, acalmando a mente sobrecarregada.
Sistema imunológico: mais forte no gelo?
Há evidências de que o frio fortalece as defesas do corpo. Um estudo holandês descobriu que pessoas que tomavam duchas frias diárias tinham menos infecções respiratórias. A teoria é que o estresse leve do frio “treina” o sistema imunológico, tornando-o mais resiliente. Mas cuidado: em excesso, o frio pode sobrecarregar o organismo, especialmente em quem já está debilitado.
Wim Hof: O homem do gelo e sua técnica
Se o frio é tão poderoso, como usá-lo a nosso favor? É aí que entra Wim Hof, o holandês apelidado de “Homem do Gelo”. Ele ganhou fama escalando o Monte Everest de bermuda e mergulhando em lagos congelados, mas seu verdadeiro legado é o Método Wim Hof – uma combinação de respiração profunda, exposição ao frio e foco mental.
Como funciona?
O método tem três pilares:
- Respiração: Uma técnica hiperventilatória que oxigena o sangue e reduz o CO2, preparando o corpo para o estresse do frio. Você inspira fundo 30 a 40 vezes, expira suavemente e então segura o ar por um tempo – um ciclo que aumenta a resistência física e mental.
- Exposição ao frio: Começa com duchas frias e pode evoluir para banhos de gelo. A ideia é desafiar o corpo gradualmente.
- Mentalidade: Foco e meditação ajudam a controlar o medo e a sensação de desconforto.
A ciência por trás
Pesquisas mostram que o método funciona – até certo ponto. Um estudo de 2011 na Universidade Radboud, na Holanda, revelou que Hof conseguia modular seu sistema nervoso autônomo, algo antes considerado impossível. Voluntários treinados por ele resistiram melhor a uma toxina injetada, sugerindo que a técnica fortalece a imunidade. Uma revisão de 2024 no PLOS One confirmou que o Método Wim Hof reduz inflamações, mas os cientistas pedem cautela: os estudos ainda são pequenos e precisam de mais rigor.
Na prática, quem adota o método relata menos estresse, melhor sono e até alívio de dores crônicas. Mas não é para todos – pessoas com problemas cardíacos ou respiratórios devem evitar, e o excesso pode levar a hipotermia.
Como começar?
Quer experimentar? Vá devagar. Comece com 30 segundos de ducha fria após o banho quente, aumentando o tempo aos poucos. Combine com a respiração de Hof: sente-se, respire fundo por 30 vezes, segure o ar por 1 minuto e repita por três ciclos. Com consistência, o frio deixa de ser inimigo e vira parceiro.
Tummo: o fogo Interior dos monges tibetanos
Enquanto Wim Hof é moderno e científico, o Tummo é ancestral e espiritual. Praticado por monges budistas tibetanos, esse método usa meditação e respiração para gerar calor interno, permitindo que eles sequem lençóis molhados sobre o corpo em montanhas geladas.
O que é?
Tummo, que significa “fogo interior” em tibetano, combina visualizações – como imaginar uma chama no centro do corpo – com respirações controladas. Os monges inspiram profundamente, contraem músculos abdominais e “seguram” o ar, canalizando energia para aquecer o corpo. É parte de uma prática espiritual maior, ligada à busca por iluminação.
Funciona mesmo?
Sim, e há provas. Em 1980, o pesquisador Herbert Benson, de Harvard, mediu a temperatura de monges em Tummo e viu aumentos de até 8°C nas extremidades. Estudos mais recentes com ressonância magnética mostram que a prática ativa áreas do cérebro ligadas à regulação térmica. Diferente de Wim Hof, o Tummo foca no calor interno, não na resistência ao frio externo.
Como desenvolvê-lo?
Aprender Tummo fora do contexto monástico é desafiador – exige anos de meditação e orientação de um mestre. Mas uma versão simplificada pode ser testada: sente-se em silêncio, visualize uma chama na base da coluna, inspire profundamente pelo nariz e expire devagar, contraindo o abdômen. Com prática, você pode sentir um calor sutil. Não é magia, mas um treino da mente e do corpo.
Desenvolvendo resistência ao frio
Seja com Wim Hof, Tummo ou pura força de vontade, aumentar a tolerância ao frio é possível. Aqui vão dicas práticas:
- Exposição gradual: Comece com água morna e vá esfriando. Um banho de 1 minuto a 15°C já é um bom início.
- Respire certo: Técnicas como a de Hof ou a respiração abdominal do Tummo acalmam o sistema nervoso, reduzindo o choque.
- Vista-se menos: Em casa, experimente usar menos camadas. O corpo se adapta à leve sensação de frio.
- Alimente-se bem: Comidas quentes e ricas em gorduras saudáveis (como abacate ou castanhas) dão energia para o calor interno.
- Mentalize: Diga a si mesmo que o frio é um desafio, não uma ameaça. A mente comanda o corpo.
Conclusão: o frio como aliado
A resistência ao frio é uma mistura única de quem somos – nossos genes, nosso corpo, nosso ambiente e nossa cultura. Alguns nascem com uma vantagem, como um superpoder herdado dos ancestrais, mas todos podem aprender a enfrentá-lo. Mais que isso, o frio oferece lições: ele fortalece o coração, desperta a mente e nos lembra da nossa resiliência. Técnicas como Wim Hof e Tummo mostram que o gelo não é só algo a suportar, mas a transformar em energia. Então, da próxima vez que o vento gelado bater, respire fundo. Talvez o frio tenha mais a nos ensinar do que imaginamos.
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FONTES
- “3 Formas de Se Acostumar ao Frio”. WikiHow, 2014. Disponível em: https://pt.wikihow.com/Se-Acostumar-ao-Frio
- “Fazer musculação pode te tornar mais resistente ao frio”. Superinteressante, 2018.Disponível em: https://super.abril.com.br/saude/fazer-musculacao-pode-te-tornar-mais-resistente-ao-frio/
- “The Effect of Cold Showering on Health and Work: A Randomized Controlled Trial”. PLOS One, 2016.Disponível em: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0161749
- “The Science behind the Wim Hof Method”. Wim Hof Method, 2024. Disponível em: https://www.wimhofmethod.com/science
- “Voluntary activation of the sympathetic nervous system and attenuation of the innate immune response in humans”. Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), 2014. Disponível em: https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.1322174111