Nos programas esportivos que assistimos na televisão, sobre qualquer modalidade esportiva, é muito comum vermos a exaltação do talento de determinado esportista. O talento aparece como algo quase místico, uma certa qualidade que torna o esportista como que dotado de poderes especiais que são vetados à maioria dos demais seres humanos. É claro que o talento existe, porém a forma como é apresentado ignora que existe uma lacuna entre a pessoa em si e a manifestação de seu talento. É como se, por exemplo, em 23 de outubro de 1940, em Três Corações, tivesse nascido um menino especial, um grande talento que assombraria o mundo inteiro. Mas será que Pelé já nasceu especial, e foi apenas uma questão de tempo até que isso se manifestasse ao mundo? É verdade que há pessoas que parecem ter certa inclinação ou afinidade inata para determinadas áreas do conhecimento ou das artes, como a matemática ou a música. Mas isso seria suficiente?
Vejamos a trajetória das irmãs Polgar.

Judit (esquerda), com 9 anos, joga às cegas contra Sofia enquanto seu pai observa
A educação das irmãs Polgar, Zsuzsa (Susan), Zsófia (Sofia), e Judit, foi altamente incomum e centrada em torno do xadrez, refletindo uma abordagem educacional experimental concebida por seus pais, László e Klara Polgar. As irmãs foram educadas em casa, principalmente por sua mãe, Klara. Essa decisão foi tomada para que elas pudessem se dedicar ao xadrez sem as restrições de um currículo escolar tradicional. A educação doméstica permitiu-lhes um horário flexível e foco intensivo em suas áreas de interesse. O pai, László Polgar, era um pedagogo e psicólogo que acreditava que qualquer criança poderia ser um gênio se educada corretamente. Ele escolheu o xadrez como o campo em que suas filhas se especializariam, acreditando que o jogo poderia desenvolver habilidades cognitivas e estratégicas. Desde muito jovens, as irmãs foram treinadas rigorosamente no xadrez, com milhares de horas dedicadas ao estudo e prática do jogo. László desenvolveu um método educacional que incluía aprender através de exemplos específicos e problemas de xadrez. Ele acreditava em ensinar através de padrões e esquemas, o que é mencionado no contexto do trecho traduzido anteriormente. Ele criava e selecionava problemas de xadrez para suas filhas resolverem, ajudando-as a desenvolver a capacidade de reconhecer e aplicar estratégias complexas. Embora o xadrez fosse o foco principal, as irmãs também foram expostas a outras disciplinas. Elas aprenderam vários idiomas, matemática, e outras ciências. A ideia era criar um ambiente de aprendizagem holístico onde o desenvolvimento intelectual fosse abrangente. As irmãs competiam entre si e com outros jogadores, o que ajudou a afiar suas habilidades. Elas também foram expostas a um ambiente social diversificado, participando de torneios internacionais desde muito jovens, o que não só melhorou suas habilidades de xadrez, mas também suas competências sociais e culturais.
Conclusão: essa educação única provou ser extremamente eficaz, com todas as três irmãs se tornando grandes mestres de xadrez, sendo Judit a mais notável por ser a única mulher a entrar no top 10 mundial de jogadores de xadrez masculino e feminino combinados. A abordagem dos Polgar questionou e desafiou muitas noções tradicionais sobre educação, gênero e talento inato.
Vejamos também a incrível história de outras irmãs, ambas ganhadoras de vários Grand Slams, do livro Cabeça de Campeão.
“Era uma vez, em um subúrbio negro de Los Angeles, um pai como tantos outros, cuja paixão por esportes o levava a assistir muita televisão todos os fins de semana. Em um domingo de junho de 1977, Richard Williams estava assistindo à final feminina do Aberto da França. Uma imagem chamou sua atenção: a de uma jovem tenista, Virginia Ruzici, embolsando o cheque da vencedora. Um grande cheque aos olhos desse pai de família de classe média, uma soma de dinheiro que parecia desproporcional ao esforço envolvido. A imagem não o abandonou, tornou-se uma revelação. Por que ele, Richard Williams, deveria permanecer como mero espectador quando parecia tão fácil alcançar o sucesso? Uma ideia começou a tomar forma na mente de um homem suficientemente rebelde contra o mundo para ter o desejo de conquistá-lo. Tudo o que ele tinha de fazer era encontrar o caminho para o sucesso. Tudo o que ele precisava fazer era encontrar os soldados para liderar a campanha. Richard convida sua esposa a dar à luz mais duas filhas (eles já têm três), dois bebês campeões, é claro!
Venus nasceu desse destino curioso, seguida por Serena, alguns meses depois. Informadas de sua missão desde cedo, as garotinhas começaram a trabalhar sob a supervisão de um pai de nível médio, formado em finanças e jogador de tênis de domingo, que tinha certeza que estava na melhor posição para treinar duas campeãs e saber o que era melhor para si. Sua rejeição à tradição, sua desconfiança natural em relação às regras ditadas por brancos para brancos, só poderiam ajudá-lo a encontrar o caminho certo. Durante duas décadas, o mundo do tênis não ouviu nada sobre elas ou sobre Richard Williams. E por um bom motivo: as irmãs nunca jogaram em um torneio juvenil! Seu pai queria dar a elas tempo para crescer, aperfeiçoar seu jogo e sua personalidade, longe da atmosfera considerada prejudicial nas competições juvenis. A prioridade foi dada à educação. O ‘leitmotiv’ desses anos passados à margem do sistema é: ‘Sejam equilibradas, sintam-se bem consigo mesmas e, quando chegar a hora certa, vocês conquistarão tudo o que quiserem’.
Se essa decisão afetasse apenas a tradição! É muito pior, é suicida. Ao redor deles, as pessoas estão rindo. O que eles acham? Que vão reinventar o tênis?
Em sua primeira participação em um Grand Slam, no US Open, Venus chegou à final. Quando aprenderam a jogar e compensaram as deficiências causadas pela inexperiência em competições, as irmãs assumiram o controle do jogo e começaram a trocar títulos de Grand Slam como uma família dividindo um bolo de aniversário.
Em Roland Garros, Venus, a finalista, fotografa Serena, a vencedora. Em Wimbledon, um mês depois, elas se abraçam após a final. O pai, por outro lado, está em casa, em frente à televisão, exatamente como estava vinte anos antes, naquele domingo de 1977, quando decidiu, por capricho, adicionar seu grão de sal à máquina do tênis mundial, sem suspeitar que um dia teria o poder de parar a máquina e quebrar o banco. Naquele dia, quando olha para a TV, Richard precisa dizer a si mesmo que fez seu trabalho. Número um do mundo: Serena Williams! Número dois: Venus Williams!
Não espere de Richard Williams receitas de como bater uma recepção ou conduzir uma partida. Ele diz: ‘Se você puder treinar a mente de alguém, não importa o que você ensine, mesmo que a pessoa não tenha braços, pernas ou olhos, ela terá sucesso’.”

São histórias inspiradoras e edificantes, com certeza. Mas isso apenas não é suficiente para se conquistar o sucesso em um empreendimento qualquer. Tudo começa com um desejo, uma ideia, ou mesmo um sonho, se preferir. Mas isso é apenas uma pequena chama que acende o estopim. Essa chama deve seguir um longo caminho até seu objetivo final. E, para isso, a palavra-chave é PLANEJAMENTO. Entre um desejo, ou um sonho, e sua realização, é necessário um plano bem feito que concretize as ações necessárias para seu devido desfecho. Pensar “vou ser um campeão” ou “vou alcançar a estabilidade financeira”, por si só, não significa nada sem um plano que estabeleça as medidas concretas a serem tomadas, os inimigos internos (medo, preguiça, procrastinação, falta de conhecimento, insegurança, falta de autocontrole, etc.) e externos a serem enfrentados, os objetivos a curto prazo a serem alcançados. Mas nenhum plano é bem sucedido se não houver DISCIPLINA. Vejamos o que nos diz François Ducasse, em livro já citado.
“Na vida, e ainda mais no esporte de alto nível, o sucesso depende menos do talento que lhe foi dado do que da força que você emprega para fazer com que esse talento dê frutos. Somos todos iguais; o que realmente faz a diferença é o esforço. Se muitos jovens aspirantes fracassam, geralmente é por porque são ‘talentosos demais’. Isso os desencoraja a procurar, a ter um plano, a impor disciplina e restrições a si mesmos. Se eles não conseguem realizar seus projetos, não é porque não têm as qualidades necessárias, mas porque não têm a capacidade de criar a estrutura que permitiria que essas qualidades se manifestassem.
Há uma tendência de colocar a disciplina contra o talento. Aqueles que são naturalmente talentosos costumam pegar atalhos e estar menos acostumados a trabalhar duro para conseguir algo; e aqueles que não podem confiar muito em seu talento recorrem à disciplina. No entanto, uma coisa não deve ficar sema outra: a disciplina estabelece a estrutura, e as regras diárias necessárias para cultivar o talento.
A disciplina está ficando cada vez menos na moda. Ela evoca imagens de exército, obediência, confinamento e restrição. Preferimos enfatizar a criatividade, a originalidade, a personalidade e assim por diante. Mas se quisermos ser realmente originais, por que não ter uma disciplina original? Por que não ver a disciplina como uma criação pessoal? Falar sobre um plano – criar seu próprio plano – é uma maneira mais sedutora de falar sobre disciplina. Uma academia de esportes de alto nível começa ensinando disciplina. Isso equivale a “aprender a aprender”. Um bom treinador ensina primeiro as atitudes. Antes de transmitir seus conhecimentos aos alunos, ele deve incutir neles as regras de conduta e a atitude corporal que lhes permitirão receber melhor suas mensagens. Quanto mais os ajudar a serem ‘intensos’ em sua concentração e seu esforço, a mergulharem de corpo e alma no assunto, mais progresso eles farão. ‘Se não estiver com vontade de treinar, reduza a duração do treino, não a intensidade’, aconselha André Agassi em suas ‘Regras de Ouro’.
Trabalho, concentração e repetição são os pilares da disciplina. Quando perguntaram a Fred Astaire (o maior dançarino de cinema de todos os tempos) como ele conseguia parecer tão natural, a resposta foi: ‘Eu faço cada movimento dez mil vezes por dia’.
Podemos chamar de ‘bolha de concentração’ ou ‘casulo’ dentro do qual o talento terá as melhores chances de crescer e, um dia, de se destacar e, em alguns casos, até de explodir. Pode parecer estranho, mas quanto mais rigorosa for a estrutura, mais livre será a mente e mais liberdade terá para se expressar. Não devemos nos esquecer de que os artistas também têm sua própria disciplina. Eles estabelecem horários para si mesmos, precisam encontrar seu próprio ritmo, manter suas ferramentas e assim por diante. Para se concentrarem, precisam mergulhar em uma atmosfera particular, delicada e cuidadosamente estudada e, quando estão criando, não podem fazer mais nada ou pensar em outra coisa. Essa busca pessoal por condições ideais de trabalho faz parte da criação artística.
Cabe a cada indivíduo encontrar sua própria disciplina. Os procedimentos ou princípios usados são indiferentes: o mais importante é adquirir uma rotina, graças à qual você não questiona mais o esforço e consegue se concentrar por muito tempo, totalmente, em um único assunto de cada vez. A disciplina é adquirida quando as regras se tornam automáticas e você quase não precisa mais pensar nelas (levantar a tal e tal hora, cumprir tal e tal restrição ou regra de treinamento, repetir tal e tal exercício, seguir tal e tal dieta etc.). Quando as regras são claras, mesmo que seja difícil, você se acostuma com elas, e elas se tornam mais fáceis. O próprio corpo, acostumado com o esforço, acaba exigindo seus exercícios diários.
A boa disciplina é aquela que permite que todos entendam o seu valor. Ela é eficaz de verdade quando é aceita de boa vontade e se torna um estado de espírito. Ser disciplinado é um contrato que você faz consigo mesmo; você pode decidir se esforçar mais e se tornar mais exigente, mas o mais difícil é manter um alto nível de exigência pessoal ao longo do tempo. As pessoas bem-sucedidas são aquelas que entenderam que o caminho mais difícil é sempre mais empolgante e mais recompensador do que o caminho óbvio que todos seguem; elas entenderam que seu sucesso dependerá – por definição – de sua capacidade de ver, pensar e agir de forma um pouco diferente todos os dias… Isso vai desde a atitude a ser adotada diante das dificuldades até a maneira de lidar com pequenos detalhes práticos – por exemplo a garrafa de água ou a barra energética que você não pode esquecer de colocar na bolsa -, que dizem muito sobre o estado de espírito do esportista. Podemos considerar que adquirimos uma disciplina quando colocamos todas as chances de sucesso a nosso favor, inclusive em uma rotina de proteção; acabamos tendo o ‘espírito do difícil’. As dificuldades nos moldam, nos ensinam paciência e humildade, nos tornam sensíveis à nossa natureza e aos limites e nos preparam para uma provável elevação.
Portanto, o talento nem sempre é o que você pensa que é ou o que você vê. Picasso costumava dizer que ‘a coisa mais importante no trabalho é o que você não vê’; em outras palavras, o pensamento por trás do trabalho, a pesquisa, o plano… O verdadeiro talento consiste em levar suas qualidades naturais a um ponto de domínio excepcional. Não devemos confundir talento natural com domínio técnico, e é importante entender que o domínio ‘genial’ dos campeões tem sua origem nas qualidades mentais (intensidade de concentração, rigor, atenção aos detalhes etc.) que acompanham o trabalho técnico há muitos anos, desde a infância. O verdadeiro talento dos campeões é essa disciplina mental; em outras palavras, o talento de explorar seu talento.

Por fim, uma palavrinha sobre a prática. Prática não significa rotina, e muito menos estagnação ou mero esforço repetitivo, ainda que seja um esforço intenso. Nas palavras de Angela Duckworth, em seu livro Garra, “Conhece alguma pessoa que passou muito tempo fazendo a mesma coisa – talvez a vida profissional inteira – e o máximo que se pode dizer de sua competência é que ela é mais ou menos boa e não merece ser demitida? Como um de meus colegas costuma dizer de brincadeira: algumas pessoas acumulam vinte anos de experiência, mas outras têm um ano de experiência, vinte vezes seguidas. A palavra japonesa ‘kaizen’ significa não ceder à estagnação do desenvolvimento. A tradução literal do termo é ‘aperfeiçoamento contínuo’. Há algum tempo, a ideia se popularizou na cultura empresarial americana, trombeteada como o princípio básico da eficientíssima economia industrial japonesa. Depois de entrevistar dezenas de modelos de garra, posso afirmar que todos eles transpiram ‘kaizen’. Sem exceção. … É um desejo contínuo de aprimorar. É o contrário da complacência. Mas é um estado mental positivo e não negativo. Não se trata de olhar para trás com insatisfação. Trata-se de olhar para a frente e querer crescer.